"Tenho um punk dentro de mim, debaixo da minha pele. Há vezes em que sou obrigado a pôr-me à sua frente e a segurá-lo pelos ombros, quer fugir, quer dar pontapés nos caixotes do lixo e deixá-los espalhados no meio da rua. Seguro-o como se tentasse evitar um briga. Não faças isso, não vale a pena. Na maior parte do tempo, esse punk está a dormir, sentado num passeio dentro de mim, encostado a uma parede, com as costas tortas, o pescoço torto, inconsciente, bêbado ou drogado com o perfume dos lugares onde vou. Esse punk dentro de mim não os suporta, prefere comer restos abandonados na mesa de esplanadas do que jantar de fato e gravata na casa de príncipes, prefere vomitar aguardente destilada pelo estômago do que ter de responder palavras vazias às palavras vazias dessas conversas. Já houve ocasiões em que esse punk quis puxar a toalha da mesa posta, aquilo que mais desejou foi ver o serviço inteiro de jantar suspenso por um instante no ar da sala e, depois, a desfazer-se no chão....
Em conversas com outras pessoas, estando a falar ou a ouvir, é muito frequente que esse punk me esteja a sussurrar palavras ao ouvido. Tem uma voz riscada por grãos de areia. É como se a sua garganta fosse rugosa, e talvez seja. Esse punk prefere gastar aquilo que tem, prefere gastar-se, a ter tudo muito guardadinho em gavetas, apenas para ser usado em dias especiais, com muito cuidado para não riscar, para não sujar. Esse punk gosta de sujar-se. As outras pessoas têm dificuldade em entender o prazer imenso de estar sujo, de não tomar banho, de deixar o tempo acumular-se na pele, de torná-la morna, da certeza de vida que existe por baixo de tudo isso. Porque esse punk também tem muito dentro de si, também há muito debaixo da sua própria pele. Eu tenho um punk dentro de mim, debaixo da minha pele, e esse mesmo punk tem muito dentro de si. Não vou enumerar, não vou cair nessa vertigem. Vou apenas assinalá-la. Essa arqueologia pode exigir a vida inteira...
Esse punk, que grita rouco, que diz que quer matar este e aquele, que quer partir isto e aquilo, é como um menino fràgil, à mercê de mil coisas que o podem matar, partir, e que o matam devagar, que o desgastam, mas às quais ele resiste, porque ele tem memória, ele não esquece.
Muitas vezes, quando estamos sozinhos, falamos de muitos assuntos, rimo-nos como pessoas normais. E ele não é esse punk que tenho dentro de mim, mas é uma pessoa com um nome, que chegou de um lugar. E eu não sou eu, sou também uma pessoa com um nome, que também chegou de um lugar. Rimo-nos. E parece-nos que não há outra pessoa que possa compreender as nossas histórias. Talvez seja mesmo assim: ficamos os dois, tatuados e rodeados de livros. Depois, quando estamos no centro de uma multidão, esse punk quer sair, mas eu digo-lhe que não, ninguém pode vê-lo mais do que apenas um pouco, quase nada...
Quando estamos sozinhos, sentamo-nos à mesa e, às vezes, juntos, ficamos em silêncio durante muito tempo."
José Luis Peixoto